Exposição individual de Camila Crivelenti
Produzido por Uncool Artists
Curadoria de Ana Roman
A exposição Hierofania trata-se da manifestação do sagrado no mundo concreto através de símbolos. O sagrado como função de dar sentido às coisas profanas, os símbolos como elo que ligam os dois mundos.
O termo hierofania foi cunhado por Mircea Eliade no livro Traité d’histoire des religions (1949) (do grego hieros (ἱερός) = sagrado e faneia (φαίνειν) = manifesto) e pode ser definido como o ato de manifestação do sagrado. A palavra foi escolhida como título da exposição porque ela traz objetos e simbologias que nos remetem a alguma memória ou a algum valor que nos religa à nossa essência.
A exposição foi composta por objetos, pinturas, instalações e realidades virtuais que explora os materiais como ferramentas que moldam nossa realidade e dão sentido à nossa existência, tornando-se assim, sagrados.
Para a construção da narrativa da exposição a artista usa influências da alquimia, de objetos do cotidiano brasileiro e de suas próprias memórias.
Podemos ver a alquimia na escolha das cores das obras como branco, preto, amarelo e vermelho, as ferraduras, as miçangas, os ladrilhos remontam o imaginário da sua trajetória e marcam o caminho em busca da hierofania.
A montagem da exposição foi pensada como um caminho iniciático que passa pelas 4 fases alquímicas:
A iluminação, a última fase é composta por 2 instalações, uma física e outra digital. A física é feita com a série Serpentes juntamente com realidade aumentada em que o visitante coloca uma vela no centro através de um filtro do instagram. Já a obra digital Portais é feita em realidade virtual visualizada por um óculos VR onde o observador teve a experiência de entrar no mundo dos símbolos criados pela artista.
A alquimia consiste em uma série de ensinamentos práticos e teóricos voltados à transformação e ao aperfeiçoamento da matéria. Os alquimistas buscavam incessantemente compor o elixir da vida a partir de elementos da natureza. Tal forma de apreensão do mundo foi, assim como a bruxaria, subjugada historicamente, durante a transição para o meio de produção capitalista, em nome de um conhecimento universal, científico e masculino (FEDERICI, 2017).
Há, porém, importantes iniciativas que buscam revistar as cosmogonias alquímicas a partir de perspectivas entendidas como científicas. Entre os anos 1930 e 1940, Carl Jung deslocou os ensinamentos alquímicos para o campo da psicologia. Para ele, a sabedoria milenar dos alquimistas poderia ser um instrumento de compreensão e de comunicação para as manifestações do inconsciente coletivo na psique individual. Deste modo, todos os estágios psíquicos ligados ao processo de individuação poderiam ser vistos metaforicamente a partir dos estágios alquímicos. Ao abandonar suas crenças místicas, a sociedade contemporânea não encontra meios de explicar o mal presente no mundo e em si mesma, relegando-o ao inconsciente.
Através da alquimia, o indivíduo é convidado a olhar para si, e consequentemente a confrontar-se com sua sombra, reconhecendo os aspectos sombrios de sua ânima e de sua persona. Em Hierofania, mostra individual de Camila Crivelenti, nos é requisitado praticar este princípio: busca-se uma relação mais direta com a natureza e com o universo que nos cerca.
Os trabalhos da mostra são enunciações quase textuais. Neles, inscrevem-se textos incompreensíveis ao um espectador, que busca decifrar, como letras, as linhas verticais e horizontais desenhadas e pintadas pela artista. Neste alfabeto opaco, conseguimos identificar repetições e recorrências, cujo sentido não pode ser atribuído à priori. Somente a relação íntima com tais objetos é o que permite seu ressoar em diversas cadeias de sentido e seus possíveis aspectos sagrados. Crivelenti cria objetos mobilizadores do sagrado que existe, em potência, em tudo que nos cerca.
Hierofania, mostra intitulada a partir de um termo cunhado por Mircea Eliade e que pode ser definido como o ato de manifestação do sagrado, organiza-se a partir de núcleos que recebem o nome das distintas fases alquímicas. Estas fases seriam, para os alquimistas, fundamentais ao processo de encontro com o elixir da vida eterna, a pedra filosofal. A primeira fase alquímica seria o Nigredo: o equilíbrio. Na mostra, esta fase é composta pela série Bandeiras (2022). Cada uma das doze bandeiras da série traz, em si mesma, uma inscrição. Ao sobrepô-las, tornando impossível a leitura de toda mensagem inscrita nas mesmas, a artista aponta para o acúmulo e a sobreposição do tempo, incrustada nas superfícies de todos os objetos que existem no mundo. Bandeiras acenam para os multiversos (e também metaversos) que compõem o frágil equilíbrio do momento atual.
A segunda fase, Albedo: a purificação, é composta pela instalação Fonte dos Desejos (2020). A partir de uma vasilha d’água, erguem-se três totens, que apontam para o céu. Albedo designa a capacidade de reflexividade dos diversos materiais, e, quando olhamos para a escala planetária, este fenômeno é fundamental para as dinâmicas atmosféricas. Em Fonte dos Desejos, a agência humana perante a escala e força do planeta é indagada: podemos – e somos convidados – a desejar outros futuros, no entanto, estamos inscritos em contextos concretos e também espirituais que nos escapam às mãos.
A terceira e quarta fases são, respectivamente, Citrinita: o amadurecimento e Rubedo: a iluminação. Em Citrinita, tem-se as séries Oratórios (2022), Ladrilhos (2022) e Ícones (2022). Nos Oratórios, ferraduras são justapostas a elementos que remetem a distintas matrizes religiosas e culturais brasileiras. Em Ladrilhos e Ícones, inscrevem-se símbolos e mensagens, que carregam, de algum modo, certa universalidade. Nas séries que compõem esta fase há uma certa estabilidade nas mensagens e objetos que, porém, permanecem opacas ao espectador. Além dos escritos, a artista interessa-se pela matéria – utiliza materiais brutos como ferro, argila e madeira. Para ela, a escolha destes materiais aponta para a natureza como fonte inesgotável de conhecimento e também a uma carga simbólica inconsciente contida em cada um deles.
Em Rubedo, quarta e última fase que compõe a narrativa constitutiva da mostra, tem-se duas instalações: Serpentes (2022) e uma instalação virtual criada pela artista. Em Serpentes, o espectador se vê diante de esculturas em ferro fundido que guardam o formato de cobras, de um pêndulo metálico e é convidado a completar a instalação com uma vela, usando um filtro de Instagram disponível via QRCODE. Na instalação virtual, o espectador é convidado a adentrar o universo poético de símbolos da artista. Estes trabalhos miram a força vital contida na natureza destes seres que rastejam no planeta. Compreendê-los enquanto fonte de conhecimento fundamental para a construção de outra cosmogonia, que talvez parta de um hibridismo entre o universo virtual e físico.
Em Hierofania, reúnem-se trabalhos de Crivelenti que compreendem a existência em uma escala maior do que a cotidiana e terrena. Não se trata, de um domínio, e de uma subjugação da natureza, do tempo e do espaço ao conhecimento. A artista aponta para uma urgente observação e prática no mundo a partir da multiplicidade e do mistério. Não precisamos entender tudo que nos cerca, mas respeitar as opacidades e dar espaço àquilo que não podemos compreender.